quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Ele me ensinou o que é graça


Quando meu avô estava há alguns metros da entrada de casa já era possível saber que estava chegando. Assoviar os hinos do Cantor Cristão era sua marca registrada. O som entrava pela casa de uma forma inconfundível. Amaro Barbosa de Oliveira, o homem mais falante e comunicativo que já conheci em toda a minha vida.

Ainda hoje, quando fecho os olhos e penso nele, posso vê-lo caminhando. Um negro alto de 1,80m, com todos os traços faciais que a raça lhe permitia: nariz largo, lábios carnudos. Rosto fino e bigode bem aparado que, assim como os poucos cabelos que lhe restaram nas laterais da cabeça, começou a embranquecer. O chapéu — que sempre protegia do sol a cabeça calva — e a bengala eram acessórios inseparáveis.

Fosse aonde fosse, a música sempre o acompanhava. Em casa, nos momentos familiares, pedia que cantássemos com ele os hinos do Cantor Cristão; era quando exibia seu belo tenor. Foi ele a primeira pessoa a me evangelizar, antes mesmo de minha mãe, filha dele. “Renata”, dizia, “você sabe o que é graça?”. Nas primeiras vezes, eu respondia não. Então, ele explicava: “É favor imerecido de Deus”. Após inúmeras repetições, aprendi e estava pronta para ouvir a Palavra de Deus de um modo mais consistente. Morávamos em cidades diferentes; ele na Baixada Fluminense e eu na região serrana do Rio de Janeiro. Por isso, quem colheu minha conversão foi outra pessoa; mas quem lançou a semente, com certeza, foi meu avô.

Ele foi levado a Cristo por minha avó, Antônia Maria. Os dois foram os primeiros de suas famílias a se converterem ao evangelho, em 1968. No início freqüentaram a Igreja Assembléia de Deus, mas logo depois se transferiram para uma Igreja Batista. Os seis filhos também foram evangelizados e criados segundo as Escrituras.

Faziam culto doméstico todos os dias. A principal razão era que minha avó não sabia ler, por isso meu avô se sentia no dever de, todos os dias, compartilhar com a família uma porção da Palavra de Deus. Foi assim que se tornou um grande conhecedor do texto sagrado. Apesar de nunca ter freqüentado uma escola — pois aprendera a ler e escrever com explicadoras — conhecia mais a Bíblia do que muitos pastores que encontrei por aí.

Seu amor pela Bíblia era, sem dúvida, sua característica mais marcante. Meu avô fazia questão não só de estudar os textos, mas de decorá-los. Recitava capítulos inteiros para mim e para meus primos. Na época achávamos que gostava apenas de se exibir. No entanto, mais tarde vimos que havia um propósito em tudo aquilo.

Aos 70 anos meu avô começou a lutar contra um glaucoma que lhe tirou toda capacidade de visão por volta dos 80 anos. Mas isso não o impediu de pregar ou evangelizar, pois os textos estavam em sua mente. Às vezes, participava de um programa em uma rádio comunitária, onde tinha a oportunidade de falar sobre Jesus por quinze minutos. É bem verdade que havia momentos em que chorava por não poder mais ler a Bíblia e pedia que lêssemos para ele. Ao final, comentava: “Ô coisa boa, minha filha”. Isso me marcou tanto que aos 19 anos havia lido a Bíblia toda duas vezes. Hoje, aos 27, estou na quinta leitura.

Nada de preconceitos

Outra coisa importante que aprendi com meu avô foi sobre as diferenças doutrinárias. Fui criada em uma igreja tradicional e certa vez uma tia e seu filho mais velho passaram por uma experiência com dons espirituais. A família resistiu um pouco às mudanças e o pastor os excluiu da comunidade, o que os obrigou a ir para uma igreja pentecostal. Foi meu avô quem os apoiou, ensinando que Deus usa as pessoas do jeito que bem entende.

Ele leu conosco as cartas do Novo Testamento e nos mostrou como minha tia era uma crente fiel e por isso não poderia ser tratada como se tivesse sido levada por um “vento de doutrina”. Eu já era convertida e, como o resto da família, congregava em uma igreja muito tradicional. Não entrava em igrejas pentecostais, julgava seus membros fanáticos e gente sem instrução. Mas o exemplo do meu avô quebrou meus preconceitos.

Fui passar as férias com minha tia e durante um mês freqüentei uma Assembléia de Deus com ela. Foi uma experiência que mudou minha vida; aprendi que no corpo de Cristo as diferenças somam, não subtraem.

Além de um sábio conselheiro, meu avô era um grande evangelista. Quando minha avó faleceu, um jornal batista da região deu uma pequena nota, apontando os pontos de pregação e congregações que ela e meu avô haviam aberto. Eram dezenas. Apesar disso, o máximo que ele conseguiu ser na igreja foi zelador. Além de corista, é claro. Ele amava música. Meu avô morreu aos 86 anos, em 2001, sem nunca ter sido consagrado sequer a diácono. Mas levou centenas de pessoas a Cristo, em situações que eu mesma presenciei.

Meu avô me ensinou que o tempo é sempre urgente em se tratando de vidas. Quando eu e meus primos éramos pequenos e íamos para a casa de nossos avós, eles nos colocavam para brincar de culto. Foi assim que aprendemos a dirigir reuniões, recitar versículos, cantar hinos, ensaiar pregações.

Exortação

Sua disciplina de vida poderia ruborizar qualquer pastor. Ele era firme nas mínimas coisas. Quando o médico disse que estava diabético, avisou que poderia ficar bom se cuidasse da saúde. Em menos de um ano estava com a glicose totalmente normalizada. “Acho que vocês não vão chegar à minha idade. Essa geração é muito descuidada”, dizia para seus netos. Meu avô exortava sem hesitação.

Quando ficou cego e queria conversar na hora da novela, achávamos que podíamos enganá-lo, vendo televisão e fingindo que escutávamos o que dizia. Nada feito. “Você pensa que eu não sei que está prestando atenção nessa porcaria?” Odiava televisão, dizia-nos que aquilo acabaria com nossa vida espiritual. Ele nos dava conselhos de toda ordem, era impressionante como tinha sabedoria.

Na última vez que encontrei com meu avô ele tinha passado mal e havia acabado de voltar do hospital. Disse que sua hora estava chegando e que estava muito feliz por saber que ia encontrar com o Senhor. Sentado no sofá, pediu que eu fizesse uma oração de ação de graças. Começou a glorificar o nome de Deus e a chorar. Minha tia veio da cozinha, temendo que o coração dele não agüentasse, mas ele foi firme até o final e orou: “Senhor, estou sentindo uma grande alegria espiritual. Ô coisa boa”. Foram as últimas palavras que ouvi de meu avô. Em seguida, foi dormir. Agora aguardo o dia em que nos reencontraremos e cantaremos juntos por toda a eternidade. Hoje, por causa dele, sei não apenas o que é graça, mas o que ela pode fazer em nossas vidas. Não há placas, coros ou ruas com o nome dele, mas sou testemunha viva de que sua pegada forte ajudou-me a caminhar junto com o meu Salvador.

*Renata Cristina de Oliveira Tomaz