quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

A tirania da felicidade

Vivemos hoje o que se poderia chamar “a tirania da felicidade”. Ser feliz virou uma obrigação. O consenso diz que a felicidade é o objetivo maior da humanidade. Pascal Bruckner, ensaísta francês, analisa que esse fenômeno ocorreu depois de 1968, “quando se fez uma revolução em nome do prazer”. Desde então, a felicidade, ainda segundo ele, é mais do que o dinheiro – “é a nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social.” Swami Adiswarananda, monge da Ordem Ramakrishna e dirigente do Ramakrishna-Vivekananda Center, de Nova Iorque, nos EUA, denuncia nossa sociedade dizendo que “as pessoas podem diferir em suas perspectivas políticas e religiosas, filosofias de vida, perfis psicológicos, cultura e raça, mas todos, sem exceção, querem ser felizes. A felicidade é a meta do pobre e do rico, do erudito e do ignorante, do santo e do pecador, do ateu e do crente, do ascético e do indulgente”. É por causa da felicidade que espirituais oram, trapaceiros trapaceiam, açambarcadores açambarcam, caridosos entregam-se à caridade, bêbados bebem, ladrões roubam e penitentes se arrependem. Almejando felicidade, uns se casam, outros se divorciam; alguns cometem suicídio e outros se tornam homicidas. E, no entanto, a perseguição à felicidade resulta numa tentativa caótica, absurda, infrutífera. Ninguém tem certeza de como alcançá-la. Nenhum ramo de estudo nos trouxe qualquer conhecimento a respeito do segredo da felicidade. A religião enfatiza a salvação e a filosofia, a busca da verdade. Os moralistas falam a respeito do dever e os psicólogos nos pedem que enfrentemos e convivamos com a infelicidade. Os cientistas pouco se importam com nossos sentimentos e os economistas dão valor tão-somente à riqueza. Nenhum deles se dedica ao problema da felicidade. Em busca da felicidade as pessoas freqüentemente se comportam de forma estranha. Alguns ficam felizes quando os outros estão felizes; alguns são felizes quando os outros são infelizes e existem até mesmo aqueles que são felizes quando eles próprios são infelizes. Uns têm esperança de comprar a felicidade; outros há que tentam usurpá-la do próximo. Há aqueles que buscam alcançar a felicidade através do domínio, pelo poder; outros, no apego às coisas. Desta forma, estamos todos, constantemente, perseguindo a felicidade ao invés de sermos felizes. Não admira, portanto, que nasçamos chorando, vivamos nos lamuriando e morramos frustrados. A sociedade contemporânea vive à luz de um único mandamento: “Serás feliz”, que traduzido é “buscarás estar satisfeito com tudo o tempo todo”. Este único mandamento se decompõe em três outros submandamentos. O primeiro é “eliminarás todo sofrimento”: negarás a dor; fugirás do desconforto; evitarás os fracassados; rejeitarás que não proporcionar prazer. O segundo submandamento é “satisfarás todos os teus desejos”: conquistarás o máximo; buscarás o prazer acima de tudo; não passarás vontade; correrás atrás de todos os teus sonhos; não te sacrificarás por nada nem ninguém. O último é “realizarás o pleno potencial”: serás sempre o melhor; viverás sempre apaixonado; terás filhos perfeitos; prosperarás sempre e andarás sobre as águas. Mas basta um pouco de bom senso para concluir que isto não é possível. Então o “mundo de Caras” propõe outro mandamento: “Construirás uma imagem de sucesso”. A felicidade conforme ostentada hoje nas revistas, novelas, talk-shows e programas de auditório é uma farsa. Colocando os pés no chão, encontramos o conceito judaico-cristão da bem-aventurança, a expressão bíblica que mais se aproxima do ideal contemporâneo de felicidade. As palavras usadas na Bíblia foram ashréi, no hebraico, e makarioi, em grego. Ashréi é a primeira palavra dos salmos 1 e 119, e também pronunciada por Jesus nas bem-aventuranças, que os lingüistas gostam de traduzir por “felizes”. André Chouraqui sugere outra compreensão. Explica que “ashréi repete-se 43 vezes na Bíblia hebraica. Esta exclamação (no plural), tem como radical ashar, que não evoca uma vaga felicidade de essência hedonista, mas implica uma retidão (yashar) do homem marchando na estrada sem obstáculos que leva em direção ao reino de Deus. Todos os dicionários etimológicos do hebraico bíblico dão como primeiro sentido ao radical ashar o de marchar; ser feliz é um sentido secundário e tardio. Will Ferguson, em seu romance Ser feliz, denuncia a insensatez de uma sociedade feliz, sem contradições e contrariedades. Conta a história de Edwin De Valu, que edita um best-seller de auto-ajuda e alastra uma praga devastadora pela humanidade: a felicidade. O romance é um primor, que desmascara a mitologia da realização pessoal e advoga a necessidade de aprendermos a conviver com a incompletude e as imperfeições inescapáveis à condição humana. Com um humor ímpar, Ferguson diz que “se, um dia, alguém escrevesse um livro de auto-ajuda que realmente funcionasse, que sanasse nossos infortúnios e eliminasse nossos maus hábitos, os resultados seriam catastróficos”. O primeiro passo na direção da felicidade é o desmascaramento dela mesma conforme proposta pela sociedade contemporânea. Nas palavras de Mário Quintana, a escolha de uma “felicidade realista”. Uma felicidade que não depende do lugar onde se chega, mas sim do jeito como se vai. Uma felicidade que seja capaz de conviver com a imperfeição, com a frustração, com castelos desmoronados, com desejos não satisfeitos. Uma felicidade mais simples e singela, e menos hollywoodiana. A felicidade da fraternidade, da solidariedade, do compromisso ético. A felicidade do romance, da vida em família, mesmo com todas as suas contradições. A felicidade dos amigos ao redor da mesa, do trabalho produtivo e do ócio criativo. A felicidade de aprender, crescer, mudar as coisas e mudar a si mesmo – deixar-se transformar. A felicidade de andar sempre, não desistir nunca, seguir a trilha que Jesus deixou e conduz ao Reino eterno.

Ed René Kivitzé escritor conferencista e pastor da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo