domingo, 4 de novembro de 2007

O filho do monstro

Criança é página em branco a ser escrita.“Há momentos em que silenciar é mentir”, pensou o filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno. Vejo a criança. Não posso silenciar. É um menino de seis anos, arguto e de olhos brilhantes, filho do temível matador de taxistas, que escolheu vítimas em Minas Gerais, Mato Grosso e São Paulo – um recorde brasileiro de casos de latrocínio, ato de matar para roubar. Em companhia da mãe, o garoto veio à redação onde trabalho. A mulher ia dar uma entrevista no estúdio da TV. O menino ficou esperando. “Quem é você?”, quis saber uma colega. A resposta, rápida e fulminante: “Ué, você não sabe? Sou filho do Anestor, o serial killer, matador de taxistas”. Mais perguntas, mais respostas: “Não moro em lugar certo, porque meu pai quer matar a minha mãe e a gente vive fugindo”.Segundo a mãe, é difícil mantê-lo em alguma escola. “Quando ficam sabendo quem é o pai, logo fazem protesto dizendo que não querem seus filhos perto de um menino assim”. Surge, assim, uma figura penal nova em Direito: extensão da punibilidade. As restrições a um indesejável na sociedade seriam extensivas a seus familiares e descendentes, mesmo inocentes, como esse menino, que já viveu a realidade brutal de um adulto infeliz.A questão, insofismável, é que o menino tem como pouco patrimônio a ingenuidade, que perde precocemente. Anestor, o pai, foi repetidamente definido como “monstro”, porque, fria e implacavelmente, matou indefesos motoristas de táxi com certeiros tiros na nuca. O menino, filho do monstro, como exige entender nossa consciência – lampejos divinos –, nada tem a ver com isso. Quem não concordar, que vire a primeira caçamba de pedras.Crianças assim eu vejo todas as sextas-feiras. Elas entram em vários ônibus que partirão em direção aos presídios do Estado de São Paulo. Vejo as mulheres, muitas crianças, mistura de olhares ansiosos, todos ansiosamente esperados no dia de visita, como presente, como tudo. E até como uma tristeza. Muitos evitam esse encontro. Dizem que o pai morreu. E o menino, ou menina, consegue descobrir, anos depois, a verdade oculta. Partem desesperados para a localização, um grande momento feliz da vida. Criança fazendo visita no presídio tende a ver os pais como modelo, enquanto os outros, que os trancafiaram e os mantêm ali, é que “não prestam”. A teóloga Maria Clara Bingemer, inspirada em parte do Salmo 104, encontrou luz: apenas o sopro do Espírito de Deus “tem força e poder para transformar o deserto em jardim, os ossos secos em militante exército, fazer a virgem e a estéril conceberem e transformar as infidelidades de um povo idólatra e pecador em matéria-prima para a salvação de todos os povos”.Mas o filho do “monstro” é irmão de todas as crianças do mundo, com seus movimentos e fantasias. Ou um inocente, mas culpado, sem ter feito nada, condenado ao que saberemos somente no futuro?
Percival de Souza é escritor, jornalista e membro do Conselho Diretor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista.