domingo, 30 de dezembro de 2007

O Caminho da Sensatez

Como pastor, tenho observado que muitos cristãos vivem aprisionados e não gozam a liberdade em Cristo. São pessoas movidas por ansiedades, medos e inseguranças. Muitos carregam mágoas, culpas e ressentimentos. Por isso, não conseguem se relacionar livremente, nem com Deus, nem com o próximo. Jovens e adolescentes que são prisioneiros da aparência ou dominados pelas vontades e caprichos dos outros. Movem-se por impulsos sexuais e afetivos levianos e descomprometidos, ou são dependentes de drogas e bebidas.
Somos prisioneiros do passado por causa das nossas lembranças e memórias. E somos prisioneiros do futuro por causa das ansiedades. Em virtude disso, o presente torna-se vazio e cheio de tédio. A falta de significado intensifica a ansiedade e aumenta a vulnerabilidade a toda forma de manipulação emocional e religiosa, o que limita ainda mais a liberdade.

O apóstolo Paulo, grande mestre do ensino sobre a graça de Deus e da liberdade cristã, apresenta na sua carta aos gálatas, capítulo 3:1-5, cinco perguntas que descrevem seu coração perturbado diante do caminho absurdo que o povo de Deus havia tomado. Para ele, a ignorância daquilo que Cristo fez e a insensatez estavam levando muitos a viverem na mentira e na ilusão, ao invés de gozarem da vida abundante e liberta que Cristo lhes havia conquistado. As cinco perguntas de Paulo são um apelo à razão, ao bom senso e à lucidez para que, ao refletirem sobre elas, tais pessoas pudessem retornar ao caminho da liberdade.

A primeira pergunta nos coloca em contato com o evento mais importante da história da fé: “Ó gálatas insensatos! Quem os enfeitiçou? Não foi diante dos seus olhos que Jesus Cristo foi exposto como crucificado?” A cruz e a ressurreição são os eventos que garantem nossa liberdade. É o fato central em torno do qual todos os outros estão subordinados. A revelação do amor de Deus em Cristo Jesus, a forma como o pecado e a culpa foram resolvidos, a dádiva do “Espírito de adoção” que nos liberta do espírito da escravidão, tudo isto é central e fundamental para nos assegurar uma vida plena e verdadeira.A segunda pergunta aponta para a natureza da vida cristã: “Gostaria de saber apenas uma coisa: foi pela prática da lei que vocês receberam o Espírito, ou pela fé naquilo que ouviram?” O Espírito Santo é a presença de Deus em nós e entre nós, e também o que torna a vida cristã possível. Cristo não foi apenas um grande exemplo de vida que deve ser imitado; ele vive em nós pelo poder do Espírito Santo, numa união real que nos possibilita viver pelo poder da ressurreição. Cristãos sensatos permanecem atentos ao que Deus está fazendo em suas vidas e nas experiências que o Espírito proporciona. Por outro lado, crentes insensatos ignoram tudo isso, criam regras para a presença do Espírito Santo, insistem em que o cumprimento de tais normas é imprescindível para termos o Espírito de Deus. Acabam vivendo por espasmos espirituais ou ancorados na espiritualidade dos outros.

A terceira questão que Paulo levanta nos conduz ao caminho da maturidade. “Será que vocês são tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito, querem agora se aperfeiçoar pelo esforço próprio?” O apóstolo nos apresenta um caminho que se inicia com a revelação de Cristo e que continua com a presença e o poder do Espírito Santo que derrama sobre nós o amor de Deus, possibilitando-nos a viver a vida cristã. Quanto entramos neste caminho, iniciamos o processo de libertação. O problema é que começamos bem, crendo no amor de Deus e em sua graça maravilhosa; mas depois continuamos usando recursos próprios do legalismo ou moralismo, da manipulação religiosa e da chantagem. Iniciamos com o amor e continuamos com o cinismo e a desconfiança. Paulo está dizendo: “Usem a cabeça!” O bom senso nos preserva de abandonar o Evangelho da graça.

A quarta pergunta conduz ao reconhecimento dos valores que nos asseguram a liberdade: “Será que foi inútil sofrerem tantas coisas?” O que Paulo está dizendo é queuma pessoa sensata tem valores e por isso sofre – mas isto não inibe, nem limita a liberdade, muito pelo contrário. Uma pessoa sensata sabe o que quer e o que é importante para ela, e assim persevera no caminho da liberdade. Por outro lado, aqueles que não têm valores acabam vivendo por impulsos, tornam-se prisioneiros das pressões dos outros. Como cristãos aprendemos que o amor, a paz, o domínio próprio, a misericórdia e a mansidão são valores fundamentais. Aprendemos que o corpo é o templo do Espírito Santo e que nossa mente não é nenhum depósito de lixo. Sabemos que o perdão é melhor que a vingança, e a justiça é o caminho para a santidade. Quando perdemos tais valores, ficamos reféns da propaganda e da ilusão. Perdemos a liberdade.

Por fim, a última pergunta reafirma tudo o que ele tem dito. “Aquele que lhes dá o seu Espírito e opera milagres entre vocês realiza estas coisas pela prática da lei ou pela fé com a qual receberam a palavra?” Quanto mais fiéis formos para com o Evangelho que recebemos, mais livres e verdadeiros seremos. O Evangelho nos revela a obra extraordinária da redenção de Jesus Cristo, nos coloca em comunhão com Deus e nos oferece seu Espírito que realiza os milagres da vida em nós. Esta é a realidade que nos envolve. Trocar esta realidade por outra é viver na insensatez.

O apelo de Paulo é simples e o que ele propõe é óbvio: Usem a cabeça! Pensem! Não sejam estúpidos! Vivam sensatamente! A ausência de liberdade para muitos cristãos hoje é fruto da ignorância para com as verdades redentoras e libertadoras em Cristo, da substituição da Palavra revelada por palavras vazias e sem propostas transformadoras. São milhares de irmãos e irmãs que perderam o juízo e se aventuraram por um caminho de manipulação, chantagem e ignorância espiritual e teológica. Desenvolveram uma espiritualidade tão adoecida quanto a teologia que abraçaram ou que lhes foi ensinada. Só que Paulo nos recomenda a volta para os fundamentos da fé cristã, pois são eles que nos oferecerão o caminho da sensatez e da liberdade.

Ricardo Barbosa de Souza é conferencista e pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto/Brasilia

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

A tirania da felicidade

Vivemos hoje o que se poderia chamar “a tirania da felicidade”. Ser feliz virou uma obrigação. O consenso diz que a felicidade é o objetivo maior da humanidade. Pascal Bruckner, ensaísta francês, analisa que esse fenômeno ocorreu depois de 1968, “quando se fez uma revolução em nome do prazer”. Desde então, a felicidade, ainda segundo ele, é mais do que o dinheiro – “é a nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social.” Swami Adiswarananda, monge da Ordem Ramakrishna e dirigente do Ramakrishna-Vivekananda Center, de Nova Iorque, nos EUA, denuncia nossa sociedade dizendo que “as pessoas podem diferir em suas perspectivas políticas e religiosas, filosofias de vida, perfis psicológicos, cultura e raça, mas todos, sem exceção, querem ser felizes. A felicidade é a meta do pobre e do rico, do erudito e do ignorante, do santo e do pecador, do ateu e do crente, do ascético e do indulgente”. É por causa da felicidade que espirituais oram, trapaceiros trapaceiam, açambarcadores açambarcam, caridosos entregam-se à caridade, bêbados bebem, ladrões roubam e penitentes se arrependem. Almejando felicidade, uns se casam, outros se divorciam; alguns cometem suicídio e outros se tornam homicidas. E, no entanto, a perseguição à felicidade resulta numa tentativa caótica, absurda, infrutífera. Ninguém tem certeza de como alcançá-la. Nenhum ramo de estudo nos trouxe qualquer conhecimento a respeito do segredo da felicidade. A religião enfatiza a salvação e a filosofia, a busca da verdade. Os moralistas falam a respeito do dever e os psicólogos nos pedem que enfrentemos e convivamos com a infelicidade. Os cientistas pouco se importam com nossos sentimentos e os economistas dão valor tão-somente à riqueza. Nenhum deles se dedica ao problema da felicidade. Em busca da felicidade as pessoas freqüentemente se comportam de forma estranha. Alguns ficam felizes quando os outros estão felizes; alguns são felizes quando os outros são infelizes e existem até mesmo aqueles que são felizes quando eles próprios são infelizes. Uns têm esperança de comprar a felicidade; outros há que tentam usurpá-la do próximo. Há aqueles que buscam alcançar a felicidade através do domínio, pelo poder; outros, no apego às coisas. Desta forma, estamos todos, constantemente, perseguindo a felicidade ao invés de sermos felizes. Não admira, portanto, que nasçamos chorando, vivamos nos lamuriando e morramos frustrados. A sociedade contemporânea vive à luz de um único mandamento: “Serás feliz”, que traduzido é “buscarás estar satisfeito com tudo o tempo todo”. Este único mandamento se decompõe em três outros submandamentos. O primeiro é “eliminarás todo sofrimento”: negarás a dor; fugirás do desconforto; evitarás os fracassados; rejeitarás que não proporcionar prazer. O segundo submandamento é “satisfarás todos os teus desejos”: conquistarás o máximo; buscarás o prazer acima de tudo; não passarás vontade; correrás atrás de todos os teus sonhos; não te sacrificarás por nada nem ninguém. O último é “realizarás o pleno potencial”: serás sempre o melhor; viverás sempre apaixonado; terás filhos perfeitos; prosperarás sempre e andarás sobre as águas. Mas basta um pouco de bom senso para concluir que isto não é possível. Então o “mundo de Caras” propõe outro mandamento: “Construirás uma imagem de sucesso”. A felicidade conforme ostentada hoje nas revistas, novelas, talk-shows e programas de auditório é uma farsa. Colocando os pés no chão, encontramos o conceito judaico-cristão da bem-aventurança, a expressão bíblica que mais se aproxima do ideal contemporâneo de felicidade. As palavras usadas na Bíblia foram ashréi, no hebraico, e makarioi, em grego. Ashréi é a primeira palavra dos salmos 1 e 119, e também pronunciada por Jesus nas bem-aventuranças, que os lingüistas gostam de traduzir por “felizes”. André Chouraqui sugere outra compreensão. Explica que “ashréi repete-se 43 vezes na Bíblia hebraica. Esta exclamação (no plural), tem como radical ashar, que não evoca uma vaga felicidade de essência hedonista, mas implica uma retidão (yashar) do homem marchando na estrada sem obstáculos que leva em direção ao reino de Deus. Todos os dicionários etimológicos do hebraico bíblico dão como primeiro sentido ao radical ashar o de marchar; ser feliz é um sentido secundário e tardio. Will Ferguson, em seu romance Ser feliz, denuncia a insensatez de uma sociedade feliz, sem contradições e contrariedades. Conta a história de Edwin De Valu, que edita um best-seller de auto-ajuda e alastra uma praga devastadora pela humanidade: a felicidade. O romance é um primor, que desmascara a mitologia da realização pessoal e advoga a necessidade de aprendermos a conviver com a incompletude e as imperfeições inescapáveis à condição humana. Com um humor ímpar, Ferguson diz que “se, um dia, alguém escrevesse um livro de auto-ajuda que realmente funcionasse, que sanasse nossos infortúnios e eliminasse nossos maus hábitos, os resultados seriam catastróficos”. O primeiro passo na direção da felicidade é o desmascaramento dela mesma conforme proposta pela sociedade contemporânea. Nas palavras de Mário Quintana, a escolha de uma “felicidade realista”. Uma felicidade que não depende do lugar onde se chega, mas sim do jeito como se vai. Uma felicidade que seja capaz de conviver com a imperfeição, com a frustração, com castelos desmoronados, com desejos não satisfeitos. Uma felicidade mais simples e singela, e menos hollywoodiana. A felicidade da fraternidade, da solidariedade, do compromisso ético. A felicidade do romance, da vida em família, mesmo com todas as suas contradições. A felicidade dos amigos ao redor da mesa, do trabalho produtivo e do ócio criativo. A felicidade de aprender, crescer, mudar as coisas e mudar a si mesmo – deixar-se transformar. A felicidade de andar sempre, não desistir nunca, seguir a trilha que Jesus deixou e conduz ao Reino eterno.

Ed René Kivitzé escritor conferencista e pastor da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo