quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Mil dias que abalaram o mundo!

Há cem anos, durante os anos de 1906 a 1908, começou um movimento que mudaria a cara da fé cristã contemporânea. Em um antigo prédio da Rua Azusa, em Los Angeles, nos Estados Unidos, um grupo de crentes passou a ter experiências espirituais semelhantes àquelas narradas no livro de Atos dos Apóstolos. "Gritos estranhos e palavras que nenhum mortal em seu juízo normal pudesse entender.
Foi dessa forma que teve início, em Los Angeles, a mais recente seita religiosa. As reuniões acontecem em um prédio decadente da Rua Azusa, e os devotos de doutrinas estranhas praticam os ritos mais fanáticos, pregam as mais extravagantes teorias e se colocam em um estado de louca euforia quando se entregam ao fervor pessoal." Foi dessa forma que a edição de 18 de abril de 1906 do jornal Los Angeles Times apresentou aqueles acontecimentos. Mas nem mesmo toda a publicidade negativa seria capaz de impedir multidões de comparecerem ali. Durante cerca de mil dias, aquele antigo prédio de dois andares, construído para ser igreja, mas usado antes como estábulo, foi lugar de milagres, curas e operação de dons sobrenaturais, especialmente a glossolalia, o falar em outras línguas, as "línguas estranhas".
Nascia ali o moderno pentecostalismo, um sinal da iminente volta de Cristo, segundo seus participantes. Mas era apenas o começo. Em pouco tempo, logo se espalharia pelo mundo todo, "como fogo na seara" – para usar uma expressão tipicamente pentecostal. Um século depois, esse mover continua tão fascinante quanto foi no princípio.
Porém, ainda fica a pergunta: será que o movimento do século 21 ainda guarda a essência de seus primeiros tempos?
Mesmo após ter se espalhado pelos cinco continentes e mostrado suas virtudes, ainda há quem insista em desqualificar os pentecostais. Para muitos, inclusive o papa Bento XVI, assim como seu antecessor, João Paulo II, eles não passam de "seitas", que preocupam o Vaticano devido ao contínuo fluxo de fiéis católicos em sua direção. Pesquisadores e boa parte da intelligentzia preferem enxergar no movimento uma expressão fanática de gente pobre, que busca em suas manifestações um alívio ante as agruras da vida. Mas como explicar tamanho crescimento, inclusive nas classes sociais mais altas? E que outro movimento expressa melhor os ideais de alegria e dinamismo que Jesus prometeu aos seus seguidores? Mais de 600 milhões de pessoas em todo mundo crêem nisso, 24 milhões apenas no Brasil, segundo números do relatório World Christian Database, uma base de dados compilada a partir de uma pesquisa da organização Pew Fórum on Religion and Public Life, instituição norte-americana especializada em assuntos religiosos, mas que não tem ligação com qualquer igreja. Números que também colocam o Brasil como o maior país pentecostal do mundo e se tornam muito maiores se forem contados também os carismáticos, elevando a porcentagem daqueles que crêem na operação dos dons do Espírito Santo nos dias atuais para 34% da população ou 62 milhões de pessoas. Como nos dias de Azusa, essas pessoas continuam gostando da animação dos cultos em que há mais liberdade e a liturgia é menos formal. Mas engana-se quem pensa que pentecostalismo é apenas barulho e emoção. Em geral, os pentecostais professam o mesmo credo dos outros evangélicos, também chamados tradicionais. A diferença está na ênfase que dão à operação do Espírito Santo. Para essa gente, a verdadeira adoração deve ser dirigida pelo Espírito e levar a uma relação íntima com Deus.
O fiel deve viver uma renovação cotidiana de sua comunhão pessoal com Deus, experimentando o fervor evangelístico e poder sobrenatural para testemunhar. Todos os ingredientes que também foram experimentados pelos discípulos, quando receberam o primeiro derramamento do Espírito há 2 mil anos em Jerusalém, cinqüenta dias após a Páscoa, durante a Festa de Pentecostes – daí o nome do movimento atual. Chuva serôdia – O que aconteceu nos Estados Unidos no começo do século 20 foi uma experiência incrível, mas não única. Desde os primórdios do Cristianismo, tem acontecido o derramar do poder divino (veja o quadro ao longo desta reportagem). Essa busca se intensificou ao longo do século 19, quando europeus e norte-americanos já vinham buscando uma renovação semelhante, de olho na "chuva serôdia" que, segundo as Escrituras, ocorreria antes da volta de Cristo. "Era uma época de profundas transformações sociais, crescimento urbano, pobreza e materialismo. Tudo isso criava muita sede por Deus.
Reavivalistas como Charles Finney e Dwight Moody prepararam o caminho, trazendo o povo de volta às igrejas", explica Leonildo Silveira Campos, professor de Sociologia da Religião na Universidade Metodista de São Paulo e organizador de um fórum sobre os 100 anos do Avivamento da Rua Azusa no Brasil. "A busca da ‘segunda benção’ ou experiência de santificação que, segundo pregavam grupos holiness e metodistas, devia acontecer após o batismo em águas, foi fundamental para gerar o compromisso de buscar a Deus e preparar o caminho para uma ‘terceira benção’: o batismo no Espírito." Na época, surgiram inúmeros relatos de experiências sobrenaturais, com manifestações do falar em línguas. Mas a experiência só foi sistematizada em 1901.
Em outubro do ano anterior, Charles Fox Parham, um pregador metodista da linha da santidade, e sua esposa resolveram descobrir qual era o segredo da "fé apostólica", acompanhada por milagres, curas e sinais, coisas que já não eram tão comuns em seu tempo. Para tanto, abriu uma escola bíblica em Topeka, interior do estado norte-americano do Kansas. Parham alugou barato uma mansão com um magnífico pavimento térreo e um segundo andar feito com materiais de segunda linha. A construção era objeto de pilhéria na cidade e apelidada de "A tolice de Stone", em alusão a seu proprietário original, que não teve dinheiro para terminá-la. Diretor e aluno, ele decidiu que a Bíblia seria o único texto usado e o Espírito Santo, o único professor. Matricularam-se 40 alunos. "Em dezembro, Parham saiu em viagem por três dias, mas orientou os estudantes a lerem Atos dos Apóstolos em busca de algum fator constante sempre que ocorriam os batismos no Espírito Santo.
Quando voltou, encontrou o grupo eufórico: falar em línguas era o denominador comum nas experiências bíblicas", conta o jornalista John L. Sherrill em seu livro Eles falam em outras línguas (Arte Editorial). Durante alguns dias oraram para ter a mesma experiência, mas só quando impuseram as mãos sobre Agnes N. Ozman, na noite do ano novo, tiveram êxito. "Um halo parecia estar sobre sua cabeça e ela começou a falar em um idioma que não compreendíamos, mas achamos que fosse chinês. Ela não foi capaz de falar em inglês por três dias", escreveu mais tarde Parham.
Um mês depois, a maioria dos alunos já havia tido experiência similar. "A novidade era que agora, pela primeira vez, desde os dias da Igreja Primitiva, segundo os pentecostais, o batismo no Espírito foi buscado, e o falar em línguas, esperado como sua evidência inicial", completa Sherrill. Depois de altos e baixos na tentativa de divulgar essas experiências, Parham abriu, em 1905, sua escola em Houston, Texas. Um de seus alunos mais promissores era William Joseph Seymour, um ministro negro, de origem social humilde e cego de um olho. "Por causa das leis de segregação racial daquele tempo, Seymour só tinha autorização para sentar no corredor, ao lado da porta da sala de aula, e ouvir o que Parham e outros lecionavam por uma fresta. Não tinha permissão nem mesmo para orar junto com outros pelo batismo no Espírito. Apesar disso, recordava palavra por palavra tudo que os professores falavam", diz Leonildo Silveira Campos. Em 1906, mesmo sem ter recebido o derramamento do Espírito, Seymour foi convidado a pregar em uma igreja de Los Angeles.
Porém, no dia seguinte após ensinar o batismo e o falar em línguas ali, encontrou o templo trancado com um imenso cadeado na porta. Um casal da igreja não concordou com a grosseria e o convidou para continuar os estudos bíblicos em sua casa, na Rua Bonnie Brae, 214. Ali, durante três dias, ele ensinou sua posição e conduziu orações. No dia 9 de abril, enquanto pregava, as pessoas repentinamente começaram a falar em línguas, rir, clamar e cantar. Seymour teve a mesma experiência somente alguns dias depois, após passar quase uma noite inteira em oração. A notícia correu e logo a casa ficou cheia de interessados e curiosos. Porém, com tanta espontaneidade – brados de "Aleluias", cânticos exaltados, palmas e batidas com os pés –, a residência começou a estremecer. Depois de um "Glória a Deus" mais alto, o assoalho desabou. Ninguém ficou ferido, mas estava claro que precisavam de outro lugar para os cultos. Encontraram o espaço ideal no número 312 da Rua Azusa e rapidamente retomaram as reuniões. “Primícias” – Os fatos que se desenrolaram ao longo dos três anos seguintes foram notáveis, mas também causaram muita controvérsia. Agora conhecida como Missão da Fé Apostólica, a nova igreja não demorou para se tornar a maior da cidade, com cerca de 1,3 mil pessoas freqüentando seus cultos, realizados de forma espontânea na parte térrea do galpão três vezes por dia e sem intervalos.
No andar de cima, juntavam-se na "Sala de espera" aqueles que queriam orar e buscar o poder divino. Na falta de bancos, barris e tábuas serviam como assentos. Postado em uma das extremidades do grande salão térreo, Seymour era o líder, mas raramente pregava. Preferia orar. Os sinais eram freqüentes: pessoas caíam sob o poder de Deus, outras riam sem parar, tinham visões ou cantavam inspiradas pelo Espírito. Embora sem confirmação, um relato mostra a espiritualidade da atmosfera local. Conta-se que Jennie Evans Moore, que se tornaria a esposa de Seymour, chegou a cantar e tocar piano, mesmo sem nunca ter aprendido música, após receber o batismo no Espírito.
Também havia curas e libertações. Dúzias de bengalas, ataduras, muletas e velhos cachimbos eram abandonados junto às paredes do galpão, como testemunho do que se passava ali. "Várias barreiras foram quebradas em Azusa. Ricos e pobres, brancos e negros, gente educada e analfabetos vinham ali para saber o que estava acontecendo. Também apareciam repórteres de todo país. Alguns eram favoráveis, mas muitos não poupavam críticas, chamando tudo aquilo de uma ‘babel de línguas’. Outros se escandalizavam com a mistura de raças, diziam que havia barulho dia e noite, e os freqüentadores pareciam estar loucos, pois ficavam rolando no chão. O fato é que, positivas ou negativas, essas histórias só atraíam mais gente, inclusive, de outros países.
E quem ia para lá tentava levar para sua casa o que encontrava", conta o pastor norte-americano Fredy Berry, organizador das comemorações oficiais do centenário da missão de Azusa. Outro efeito do nascente pentecostalismo foi o ardor evangelístico e missionário. Como rapidamente surgiu um grande número de novos líderes, que disputavam espaço uns com os outros e reuniam seus seguidores, outras igrejas começaram a ser abertas, sempre fugindo da organização controladora e das então perseguidoras denominações tradicionais. É por isso que, desde seus primórdios, o Movimento Pentecostal adquiriu uma característica que até hoje nele predomina: a abundância de pequenos grupos e correntes independentes entre si. Foi a partir de uma delas, a Missão da Avenida Norte, em Chicago, liderada pelo pastor William Durham, que o pentecostalismo finalmente chegaria em terras brasileiras no ano de 1910. Em março daquele ano, chegaria o primeiro missionário pentecostal, o italiano Luigi Francescon. Depois de fundar igrejas para imigrantes como ele na Pensilvânia e Califórnia, Francescon esteve primeiro em Buenos Aires, na Argentina, e de lá veio para São Paulo. Após dois meses de trabalho e quase nenhum resultado, partiu para Santo Antônio da Platina (PR). Nessa pequena cidade, 11 pessoas aceitaram a fé avivada e receberam o batismo no Espírito. "Eram as primícias da obra de Deus no Brasil", como descreveu o próprio Francescon mais tarde. Confiante, ele voltou para São Paulo um mês mais tarde e começou um trabalho entre presbiterianos, batistas, metodistas e católicos. Dessa vez, 20 pessoas aceitaram a mensagem, receberam curas e tiveram a experiência pentecostal. Nascia a primeira igreja pentecostal brasileira, a Congregação Cristã no Brasil, denominação que atualmente conta com 2 milhões de adeptos, segundo suas contas. Despojamento – No mesmo ano e também vindos de Chicago, chegariam outros dois missionários que plantariam de vez a semente do pentecostalismo no país. Os suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg haviam emigrado da Escandinávia para os EUA fugindo das difíceis condições de vida em seu país. Lá, além da experiência pentecostal, tiveram uma revelação divina. Em uma reunião de oração, um obreiro disse a eles que o Senhor lhe mostrara que deveriam anunciar a mensagem em um lugar chamado Pará, do qual nunca tinham ouvido falar. A dupla debruçou-se sobre mapas e descobriu que o lugar ficava no norte do Brasil. Convencidos de que a ordem viera de Deus, Berg e Vingren venderam o que tinham, receberam ofertas e compraram uma passagem de terceira classe num navio de cabotagem. Em novembro de 1910, desembarcaram em Belém do Pará, com a cara, a coragem e muita fé. Conversando com marinheiros americanos, descobriram uma Igreja Batista que poderia lhes abrigar e foram morar no porão do templo. Logo, começaram a realizar cultos. Tudo parecia transcorrer bem, até que, em 1911, as reuniões se transformaram em um foco pentecostal, com manifestações ruidosas da presença divina. Os dois acabaram expulsos e, com outras 17 pessoas, iniciaram a Missão da Fé Apostólica. Em 1917, a organização passou a se chamar oficialmente Assembléia de Deus. Hoje, 96 anos depois, é a maior igreja protestante do país, com quase 9 milhões de membros. Com celebrações mais despojadas e maior valorização do carisma do que do saber teológico, todas as pessoas tinham vez no pentecostalismo, independente do sexo. "Infelizmente, a história oficial costuma se esquecer das grandes heroínas do início do movimento. Aliás, essa foi uma de suas características mais marcantes: nele, as mulheres tinham mais liberdade e desempenharam papéis importantíssimos na liderança dos trabalhos", destaca o sociólogo Gedeon de Alencar, membro da Assembléia de Deus Betesda e diretor do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos (Icec). A esposa do próprio Seymour foi um exemplo. Jennie Evans Moore formava com o marido uma autêntica equipe ministerial, pregando com freqüência nas reuniões. Também coube a ela pastorear a missão por nove anos, após a morte de Seymour. Além de Jennie, muitas outras experimentaram o batismo no Espírito e se dispuseram a fazer, mesmo sozinhas, a obra. Aimee Semple McPherson começou poucos anos depois a Igreja do Evangelho Quadrangular. Kathryn Kuhlman se tornaria, um pouco mais tarde, uma das mais bem-sucedidas evangelistas do século. "A mesma coisa podemos observar com Frida, a esposa de Gunnar Vingren. Como ele mesmo admitiu, ela sustentava a igreja junto com os obreiros, tomando a frente de vários trabalhos evangelísticos, como cultos ao ar livre e na publicação do jornal Boa Semente. Na foto oficial da Convenção de 1930, ela aparece sozinha no meio de dez homens", cita Alencar. Avivamento em ondas – Apesar de ser o grande marco do moderno movimento pentecostal, o avivamento da Rua Azusa não foi o único. Nos últimos 100 anos, diversos outros acontecimentos ou "ondas", como preferem os estudiosos do tema, deram novos impulsos à obra do Espírito. Impulsos que tornaram a influência do pentecostalismo cada vez mais ampla na cristandade. "Alguns falam em três ondas, mas eu prefiro cinco. Depois da primeira, a do começo do pentecostalismo, houve uma renovação no pós-Guerra, por volta de 1948, dentro de igrejas pentecostais como Assembléias de Deus e Quadrangular. Considero esse mover como a segunda onda", explica o missionário e escritor John Walker, autor de A Igreja do século 20: a história que não foi contada (Editora Worship). A terceira onda, segundo Walker, seria quase paralela à segunda. "Foi a da cura divina. Em diversas nações dos anos 50, surgiram pregadores que enfatizavam os milagres em seus ministérios. Nessa época, surgiram nomes como William Branham, Oral Roberts, T. L. Osborn e Paul Cain." Foi também neste período que surgiram no Brasil as grandes denominações avivadas, que igualmente davam muita ênfase aos milagres e reuniam multidões em templos improvisados, algumas vezes até em tendas de circo. Uma delas era a Cruzada Nacional de Evangelização, que se tornou a Igreja do Evangelho Quadrangular, iniciada por missionários norte-americanos. Ainda apareceram as primeiras igrejas pentecostais implantadas por brasileiros: a Deus é Amor, liderada pelo missionário David Miranda, e O Brasil para Cristo, do pastor Manoel de Mello. Ambas, diga-se de passagem, com forte penetração nas classes populares, o que acabou estigmatizando o pentecostalismo como fé dos pobres, preconceito que só começaria a ruir décadas depois, com a adesão das classes média e alta. A quarta onda, ou como preferem outros estudiosos, segunda, foi o movimento carismático dos anos 60 e 70. Depois de uma aversão quase que total aos pentecostais do começo do século, agora diversas igrejas chamadas de históricas recebem a mensagem do avivamento. Denominações episcopais, metodistas, presbiterianas e batistas absorvem a mensagem, adaptando-a a seu contexto, teologia e liturgia. "A grande diferença foi que as pessoas que aceitavam essa mensagem já não saíam de suas igrejas. Permaneciam nelas e ajudavam em sua renovação. Ou eram expulsas e continuavam movimentos paralelos a elas, com viés carismático", diz o pastor batista Enéas Tognini. Ele mesmo se viu no meio de uma situação dessas. Um dos introdutores da mensagem do batismo no Espírito e dos dons espirituais entre os batistas brasileiros, presenciou a expulsão de 32 igrejas da Convenção Batista Brasileira (CBB) em 1965. Junto com outros pastores, Tognini fundou, na época, a Convenção Batista Nacional (CBN). Também nesse período, outras igrejas desdobraram-se em novos grupos, como a Presbiteriana Renovada, a Metodista Wesleyana e a Aliança da Igreja Congregacional. O avivamento atingiu até a Igreja Católica, que viu surgir em uma universidade norte-americana nos anos 60 a Renovação Católica Carismática, movimento que encontrou seu mais forte eco no Brasil, a maior nação católica do globo. A superação do ranço e do preconceito contra os pentecostais permitiu que, a partir dos anos 80, surgisse a última onda avivalista no meio do evangelicalismo norte-americano, ou seja, os protestantes mais tradicionais. Enfatizando menos o batismo no Espírito e mais os dons, igrejas como o Movimento Vineyard fizeram ressurgir termos que andavam meio fora de moda como a busca por sinais e maravilhas e o evangelismo de poder. Ao mesmo tempo, no Brasil e em países do Terceiro Mundo, outro fenômeno ganhava força: o neopentecostalismo. Inspirado na teologia da prosperidade – aquela que assegura ao crente toda sorte de bênçãos nesta vida, ao contrário do pentecostalismo clássico, que prefere valorizar o desprendimento dos bens materiais e tem a fé focada na vida porvir –, causou forte impacto social. Na linha de frente, denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Igreja Renascer em Cristo mudaram comportamentos e atraíram multidões de seguidores e de críticos. Volta às origens - É ainda difícil precisar a grande influência do pentecostalismo em todo o mundo. A começar pelo seu tamanho hoje. O Pew Fórum, por exemplo, cuja pesquisa foi citada no começo desta reportagem, ouviu fiéis em países como Brasil, Estados Unidos, Chile, Nigéria, África do Sul, Índia, Filipinas e Coréia do Sul. Por mais que a quantidade de crentes já seja impressionante, ainda pode estar bem aquém da realidade. Os dados brasileiros, para se entender melhor, foram tabulados com projeção no último senso do IBGE em 2000. Atualizados, ultrapassariam os 28 milhões. Outro caso é o dos Estados Unidos, maior país protestante do mundo, onde cerca de 5,8 milhões de pessoas seriam pentecostais. Por lá, no entanto, fala-se no dobro, 12 milhões – ou 5% dos norte-americanos. A mesma coisa acontece na Coréia do Sul, país em que está a maior igreja evangélica do planeta, a Igreja do Evangelho Pleno de Seul, liderada pelo pastor David Yonggi Cho, que também é pentecostal. Só ela tem 750 mil membros, quase os 1 milhão de coreanos que a pesquisa classificou como pentecostais. Ao que parece, o instituto desconsiderou no país as tantas denominações clássicas que se pentecostalizaram e não mudaram de nome. Por outro lado, o levantamento não conta com a China, nação onde se acredita que os evangélicos já sejam 100 milhões – 75% dos quais, pentecostais. Mesmo que grandiosos, esses números são insuficientes para dar o real tamanho do movimento pentecostal. "A questão é que o pentecostalismo é um movimento de vanguarda e representou uma renovação constante do Cristianismo no último século. Foi nesse mover que se despertou o compromisso com a evangelização e com missões, estabeleceu-se a fé como algo palpável e não teórico ou abstrato, e buscou-se com expectativa o operar de Deus. Jesus tornou-se real no dia-a-dia da pessoa, houve renovação da adoração e uma nova comunhão entre os fiéis. Sem falar na confirmação da autoridade da Bíblia, como um livro literal", citam os teólogos William e Robert Menzies em seu livro No poder do Espírito (Editora Vida). Até mesmo a imprensa evangélica ganhou novo fôlego, com o surgimento desde o início do movimento de publicações como o jornal The Apostolic Faith, publicado pela Missão da Rua Azusa, e que, em seus tempos áureos promoveu unidade com seus 50 mil exemplares distribuídos em todo mundo. "Os pentecostais pregam uma fé antimodernista, pois reconhecem que os mais importantes poderes disponibilizados sobre nossas vidas repousam não em nossas mãos, mas nas de Deus. E isso, por si só, já traz o reavivamento. Mas também têm espontaneidade, liberdade em sua adoração e o sacerdócio de todos os crentes, coisas que precisamos novamente adquirir", escreveu o professor Chris Armstrong em artigo para a revista Christianity Today, em setembro do ano passado.
Todos os méritos históricos, por mais visíveis que sejam, entretanto, não podem encobrir os erros e, claro muitas distorções que surgiram nesses anos na mensagem pentecostal. Ou então, o movimento corre sério risco de se tornar só emoção, sem frutos, como aconteceu no passado com o próprio avivamento da Rua Azusa, que perdeu força depois que William Seymour começou novamente a sofrer com o racismo e houve sérias divisões por questões menores. "Todas as pesquisas mostram um crescimento espantoso dos pentecostais. Mas o que vemos hoje é muito joio no meio do trigo. Isso, porque se enfatizam muito os grandes milagres, as grandes maravilhas, o grande número de conversões, as grandes bênçãos e o grande poder. Mas se esquecem as grandes lutas, a grande santidade e o grande compromisso com Deus e sua justiça que o crente precisa ter. Afinal, não é justamente para trazer todas essas coisas que o Espírito Santo foi derramado?", questiona o escritor e teólogo assembleiano Antônio Gilberto. Para ele, um dos mais respeitados educadores evangélicos do Brasil, é necessário que tanto pentecostais quanto carismáticos se voltem imediatamente para a mensagem pregada naqueles mil dias do avivamento da Rua Azusa. Lá, onde ficava o velho galpão, existe agora apenas uma placa comemorativa do evento. Porém, sua mensagem não poderia ser mais atual, como diz o seguinte trecho: "(...) o reavivamento da Rua Azusa prega uma mensagem de salvação, santidade e poder (...) e muitos foram comissionados para levar essa mensagem do Pentecostes ao mundo".

Como rogavam Seymour e seus colegas, é o caso de os pentecostais do século 21 dizerem novamente: "Faça-o novamente, Senhor. Como fizeste no tempo dos apóstolos, faça hoje de novo!". (Colaboraram Jussara Teixeira, Mariana de Salve e Moisés Filho). Quadro: Apesar do movimento pentecostal do começo do século 20 ter redescoberto os dons espirituais, incentivando os cristãos a buscarem o batismo no Espírito Santo com a evidência do falar em línguas e trazendo novo fervor evangelístico, a verdade é que manifestações pentecostais ocorreram durante toda a história da Igreja.

Às vezes, surgidas ao acaso; em outras, como parte de avivamentos. Confira os principais momentos:

33 d. C. – Em um cenáculo na cidade de Jerusalém, os apóstolos e outros discípulos, em um total de 120 pessoas, recebem o derramamento do Espírito Santo, acompanhado de fenômenos que lembravam o vento e o fogo, além da manifestação de línguas. Após explicação e pregação de Pedro, 3 mil se convertem. Como aconteceu durante a Festa das Colheitas, cinqüenta dias depois da Páscoa, o evento recebe o nome de Pentecostes.
156 – Preocupados com a decadência espiritual da Igreja, Montano e as profetisas Prisca e Maximilla lideram um movimento pela restauração da manifestação do Espírito Santo, que se espalha pelo norte da África, Ásia Menor e partes da Europa. Mesmo com o apoio de Tertuliano e Irineu, os montanistas acabam declarados heréticos.
387 – Agostinho, bispo de Hipona, no norte da África, e um dos mais notáveis pensadores de sua época, escreve: "Fazemos ainda como os apóstolos, que impuseram as mãos sobre os samaritanos e pediram o batismo no Espírito Santo. Esperamos que os convertidos falem novas línguas”.
1173 – Na Europa medieval, o mercador Pedro Valdo e seus seguidores ensinam o sacerdócio de todos os cristãos e rejeitam as relíquias e tradições, pregando a Bíblia às pessoas em suas próprias línguas. Há relatos de manifestações de glossolalia e atos sobrenaturais entre eles.
1530 – Enquanto a Reforma causa rebuliço em solo europeu, os huguenotes reconhecem a necessidade dos dons espirituais. "Nas montanhas de Cevènes, homens e mulheres caíam em êxtase, ocasião em que falavam em francês sobre a Bíblia, apesar de só conhecerem seu próprio dialeto", relatou o escritor E. H. Broadbenat.
1630 – George Fox cria a Sociedade dos Amigos e defende o relacionamento pessoal com Deus e a direção do Espírito Santo na vida do crente. Ridicularizados com o nome quakers ou "tremedores" pelos anglicanos, eles relatam que recebiam com freqüência o derramamento do Espírito e falavam em línguas.
1735 – Choro compulsivo, tremores, quedas e arrependimento de multidões marcam as reuniões de homens como Jonathan Edwards, John Wesley e George Whitefield. Wesley lidera um avivamento que dá origem ao metodismo.
1830 – O evangelista Charles G. Finney começa a promover reuniões que produzem avivamentos notáveis em diversas cidades do interior dos Estados Unidos. O segredo para um trabalho bem sucedido, segundo ele, era o poder que havia recebido no batismo com o Espírito Santo.
1834 – Na Inglaterra, um jovem e elegante ministro presbiteriano chamado Edward Irving ensina o batismo com o Espírito Santo e a prática de dons, como a glossolalia.
1855 – Dentro da Rússia czarista, manifestações pentecostais são noticiadas na Igreja Ortodoxa Grega.
1864 – Pioneira das cruzadas de salvação e cura divina, a norte-americana Mary Woodworth Etter declara que também fora batizada com o Espírito Santo. Em suas reuniões, pessoas entravam em êxtase ou caíam no chão, relatando depois que experimentaram "profunda transformação".
1873 – Seguindo a tradição avivalista, Dwight L. Moody afirma que foi batizado com o Espírito Santo. Em suas campanhas na Inglaterra, surgem manifestações pentecostais. "Quando cheguei às salas da Associação Cristã de Moços, em Sunderland", escreveu Robert Boyd, "encontrei a reunião em fogo. Jovens falavam em línguas e profetizavam depois que Moody pregou naquela tarde".
1890 – Demos Shakarian, fundador da Full Gospel Business Man Fellowship (entidade presente em diversos países, inclusive o Brasil, e que reúne profissionais liberais e empresários evangélicos), relata uma série de experiências espirituais, especialmente profecias, entre camponeses na Armênia. Sua própria família, ao imigrar para os Estados Unidos, é exortada profeticamente a fixar residência na costa oeste.
1891 – Movimentos de santidade incentivam seus membros a buscarem uma "segunda experiência com Deus". Daniel Awrey e sua esposa descobrem uma terceira e falam em línguas.
1901 – Tem início o pentecostalismo moderno, quando na vigília da noite de ano novo, a estudante Agnes N. Ozman recebe oração com imposição de mãos de Charles Parham e alunos da Escola Bíblica Betel, em Topeka, Kansas, EUA.
1904 – Uma série de avivamentos acontecem em várias partes da Europa, especialmente no País de Gales. Naquela nação, Evan Roberts, um ex-mineiro, proclama um despertamento do Espírito marcado por manifestações do poder de Deus.
1906 – Em um galpão, no número 312 da Rua Azusa, em Los Angeles, EUA, o pentecostalismo explode e se espalha por todo o mundo.
1910 – O operário italiano Luigi Francescon, que havia saído de Chicago, nos EUA, no ano anterior, chega ao Brasil em março e começa a pregar a mensagem pentecostal em São Paulo e Santo Antônio da Platina. Seis meses depois, chegam a Belém os suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, que criam a Assembléia de Deus. O movimento pentecostal começa no país.
1950 – O advento de pregadores de curas e milagres provocam uma nova onda pentecostal no Brasil. Surgem em São Paulo as igrejas Quadrangular, O Brasil Para Cristo e Deus é Amor.
1960 – Vários membros de igrejas episcopais, presbiterianas, metodistas e luteranas nos EUA recebem a experiência do batismo com o Espírito Santo. Diferente de outros tempos, em vez de deixar a denominação, permanecem: surge a Renovação Carismática. Em 1966, o pentecostalismo chega também ao catolicismo.
1965 – No Brasil, 32 igrejas batistas são excluídas da Convenção Batista Brasileira por aceitarem o batismo e os dons carismáticos do Espírito Santo. Sob a liderança de Enéas Tognini, é criada a Convenção Batista Nacional.
1980 – A Teologia da Prosperidade começa a ganhar força no Brasil com o crescimento de igrejas como a Universal do Reino de Deus.
1985 – O estudioso norte-americano Peter Wagner consagra o termo "Terceira Onda", em referência à aceitação de um trabalhar do Espírito entre evangélicos tradicionais. A ênfase, porém, não é mais no batismo com o Espírito, mas no evangelismo de poder e no uso de dons nas celebrações.
2007 – Pentecostais e carismáticos já são mais de meio bilhão em todo mundo. O Brasil é apontado como o maior país pentecostal do mundo, com 24 milhões de crentes.

Marcos Stefano

domingo, 4 de novembro de 2007

O filho do monstro

Criança é página em branco a ser escrita.“Há momentos em que silenciar é mentir”, pensou o filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno. Vejo a criança. Não posso silenciar. É um menino de seis anos, arguto e de olhos brilhantes, filho do temível matador de taxistas, que escolheu vítimas em Minas Gerais, Mato Grosso e São Paulo – um recorde brasileiro de casos de latrocínio, ato de matar para roubar. Em companhia da mãe, o garoto veio à redação onde trabalho. A mulher ia dar uma entrevista no estúdio da TV. O menino ficou esperando. “Quem é você?”, quis saber uma colega. A resposta, rápida e fulminante: “Ué, você não sabe? Sou filho do Anestor, o serial killer, matador de taxistas”. Mais perguntas, mais respostas: “Não moro em lugar certo, porque meu pai quer matar a minha mãe e a gente vive fugindo”.Segundo a mãe, é difícil mantê-lo em alguma escola. “Quando ficam sabendo quem é o pai, logo fazem protesto dizendo que não querem seus filhos perto de um menino assim”. Surge, assim, uma figura penal nova em Direito: extensão da punibilidade. As restrições a um indesejável na sociedade seriam extensivas a seus familiares e descendentes, mesmo inocentes, como esse menino, que já viveu a realidade brutal de um adulto infeliz.A questão, insofismável, é que o menino tem como pouco patrimônio a ingenuidade, que perde precocemente. Anestor, o pai, foi repetidamente definido como “monstro”, porque, fria e implacavelmente, matou indefesos motoristas de táxi com certeiros tiros na nuca. O menino, filho do monstro, como exige entender nossa consciência – lampejos divinos –, nada tem a ver com isso. Quem não concordar, que vire a primeira caçamba de pedras.Crianças assim eu vejo todas as sextas-feiras. Elas entram em vários ônibus que partirão em direção aos presídios do Estado de São Paulo. Vejo as mulheres, muitas crianças, mistura de olhares ansiosos, todos ansiosamente esperados no dia de visita, como presente, como tudo. E até como uma tristeza. Muitos evitam esse encontro. Dizem que o pai morreu. E o menino, ou menina, consegue descobrir, anos depois, a verdade oculta. Partem desesperados para a localização, um grande momento feliz da vida. Criança fazendo visita no presídio tende a ver os pais como modelo, enquanto os outros, que os trancafiaram e os mantêm ali, é que “não prestam”. A teóloga Maria Clara Bingemer, inspirada em parte do Salmo 104, encontrou luz: apenas o sopro do Espírito de Deus “tem força e poder para transformar o deserto em jardim, os ossos secos em militante exército, fazer a virgem e a estéril conceberem e transformar as infidelidades de um povo idólatra e pecador em matéria-prima para a salvação de todos os povos”.Mas o filho do “monstro” é irmão de todas as crianças do mundo, com seus movimentos e fantasias. Ou um inocente, mas culpado, sem ter feito nada, condenado ao que saberemos somente no futuro?
Percival de Souza é escritor, jornalista e membro do Conselho Diretor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista.